25 abril 2018

Ser livre


(Foto de autor desconhecido)

Eu não nasci com fome de ser livre. Eu nasci livre — livre em todos os aspectos que conhecia. Livre de correr pelos campos perto da palhota da minha mãe, livre de nadar num regato transparente que atravessava a minha aldeia, livre de assar maçarocas sob as estrelas e montar os largos dorsos de bois vagarosos. Contanto que obedecesse ao meu pai e observasse os costumes da minha tribo, eu não era incomodado pelas leis do homem nem de Deus. (…) Só quando comecei a aprender que a minha liberdade de menino era uma ilusão, quando descobri, em jovem, que a minha liberdade já me fora roubada, é que comecei a sentir fome dela. (…) Calcorreei esse longo caminho para a liberdade. Tentei não vacilar; dei maus passos durante o percurso. Mas descobri o segredo: depois de subir uma alta montanha apenas se encontram outras montanhas para subir. Parei aqui um momento para descansar, para gozar a vista da gloriosa paisagem que me rodeia, para voltar os olhos para a distância percorrida. Mas só posso descansar um momento, porque, com a liberdade, vem a responsabilidade, e não me atrevo a demorar, pois a minha caminhada ainda não terminou. (…) Ser livre não é apenas livrar-se das próprias grilhetas, mas viver de uma forma que respeite e promova a liberdade dos outros. (…) Eu não tinha a menor dúvida de que o opressor tinha de ser libertado tanto quanto o oprimido. Um homem que tira a liberdade de outro homem está prisioneiro do ódio, está fechado atrás das grades do preconceito e da estreiteza de vistas. Não sou verdadeiramente livre se estou a tirar a liberdade a alguém, tão certamente quanto não sou livre quando me é roubada a minha humanidade. Tanto o oprimido quanto o opressor são espoliados da sua humanidade.

Nelson Mandela (1918–2013), trechos de Long Walk to Freedom, 1994, transcritos do Citador

23 abril 2018

André Gonçalves


Assunção de Nossa Senhora, c. 1730, óleo sobre tela de André Gonçalves (1686–1762), Palácio Nacional de Mafra, Mafra, Portugal

André Gonçalves foi um pintor barroco português, dos mais importantes do séc. XVIII. Rompendo com a arte predominante na sua época, que ele seguiu numa primeira fase da sua obra e que era caracterizada por um tenebrismo herdado da escola maneirista, André Gonçalves veio a pintar telas que apresentam uma claridade e uma luminosidade que, de certa maneira, podemos identificar com o reinado de D. João V, durante o qual ele viveu grande parte da sua vida. Para esta evolução da arte de André Gonçalves, contribuiram certamente a sua participação na obra do Convento de Mafra e os contactos que aí deve ter tido com artistas italianos e franceses, que o terão introduzido no radioso barroco italiano.

Muitos dos quadros que André Gonçalves pintou perderam-se em 1755, porque se encontravam no interior de igrejas que o terramoto desse ano destruiu. Pela qualidade das obras que conseguiram sobreviver a tão terrível cataclismo, podemos fazer uma ideia do enorme valor das que se perderam.


Adoração dos Magos, óleo sobre tela de André Gonçalves (1686–1762), Museu Nacional de Machado de Castro, Coimbra, Portugal

21 abril 2018

O jogo do ta



Jogo do ta, um jogo tradicional dos índios Kalapalo, que vivem no Parque Indígena do Xingu, Brasil

Brincar, conviver e divertir-se é próprio de todos os seres humanos, seja nas paragens mais geladas da Sibéria, seja nas zonas mais quentes de África. Onde quer que haja crianças ou, mesmo, adultos, há brincadeiras, jogos e diversões. Sempre e em toda a parte.

Existem jogos e brincadeiras numas partes do mundo que apresentam semelhanças espantosas com outros jogos e com outras brincadeiras de outras partes do mundo, habitadas por povos aparentemente muito diferentes. Os bosquímanos (também chamados Khoisan) da África Austral, por exemplo, têm uma brincadeira que apresenta semelhanças notáveis com a do "Bom Barqueiro" em Portugal. Só não cantam «— Bom barqueiro, bom barqueiro, / deixa-me passar. / Tenho filhos pequeninos / p'ra acabar de criar. / — Passarás, passarás, / mas algum deixarás. / Se não for o da frente, / há de ser o de trás.» Mas o resto da brincadeira é igual, incluindo a medição de forças no final. Não admira. A raça humana é uma só, o engenho humano é o mesmo em toda a parte e, por isso, não é de espantar que povos distantes e aparentemente muito diferentes acabem por ter jogos e brincadeiras semelhantes. Somos todos irmãos uns dos outros.

A brincadeira que se vê neste vídeo não tem equivalente na Europa dos nossos dias, tanto quanto eu sei. Na Europa abandonou-se o emprego do arco e da flecha desde que se generalizou o uso das armas de fogo e uma brincadeira deste tipo deixou de fazer sentido. Mas quem sabe se na Idade Média ou em épocas anteriores não terá existido na Europa um jogo semelhante a este, destinado a treinar a pontaria e a rapidez de reflexos com um arco e com uma flecha?

Esta brincadeira do povo indígena Kalapalo, do Brasil, consiste em tentar acertar com uma flecha numa rodela de palha envolvida pela casca verde de uma árvore chamada embira. Para tanto, formam-se duas equipas que se vão confrontar, as quais se dispõem em linha, a uma distância considerável uma da outra. Um membro de uma das equipas atira a rodela, chamada ta, em direção da equipa adversária, a qual terá que acertar com uma seta na rodela que passa, rolando, diante de si. Se algum jogador da equipa adversária conseguir acertar na rodela, o jogador que a tiver lançado é expulso do jogo e é substituído por um outro elemento da sua equipa, que volta a atirar a rodela. Se nenhum jogador da equipa adversária tiver conseguido acertar na rodela, invertem-se os papéis e caberá a um elemento da segunda equipa lançar a rodela na direção da primeira.

15 abril 2018

Conímbriga


Peristilo ajardinado e mosaico polícromo nas ruínas romanas de Conímbriga (Foto de autor desconhecido)

A cidade do Porto fica no mesmo lugar onde anteriormente ficava Portus Cale, de que tomou o nome. A cidade de Lisboa fica no mesmo lugar onde anteriormente ficava Olisipo, de que tomou o nome. A cidade de Braga fica no mesmo lugar onde anteriormente ficava Bracara Augusta, de que tomou o nome. A cidade de Coimbra fica no mesmo lugar onde anteriormente ficava Æminium. Porquê Æminium? Então Coimbra não vem de Conímbriga?

Conímbriga foi uma povoação antiquíssima, fundada, pelo menos, na Idade do Cobre, se é que ela não existia já na Idade da Pedra. O nome Conímbriga é de origem celta, como o de todas as povoações terminadas em "briga": Tongóbriga (perto do Marco de Canaveses), Cetóbriga (em Troia, em frente a Setúbal), Miróbriga (perto de Santiago do Cacém), Lacóbriga (que deu origem à cidade de Lagos) e muitas outras. Portugal é o país com maior percentagem de topónimos celtas da Europa, com exceção do Reino Unido e da República da Irlanda.

Conímbriga terá sido conquistada pelos Romanos em 138 A.C. e a sua romanização iniciou-se, sobretudo, no tempo do imperador César Augusto, o mesmo Augusto que era imperador de Roma quando Jesus Cristo nasceu. Durante o domínio romano, Conímbriga tornou-se uma cidade rica e importante, graças à sua localização estratégica na estrada que ligava Bracara Augusta (Braga) a Olisipo (Lisboa).


Mosaico romano em Conímbriga (Foto: Chris)

No séc. V, como é sabido, deu-se a queda do Império Romano, às mãos de povos bárbaros que o invadiram a partir do Norte e do Este. O território que corresponde ao Portugal atual foi invadido, numa primeira vaga, por três (nada menos do que três!) povos bárbaros, que ainda por cima eram dos mais temidos de todos: Suevos, Vândalos e Alanos. Os Suevos e os Vândalos eram germânicos, enquanto os Alanos eram caucasianos. Aqui chegados, estes bárbaros dividiram o território entre si, mas logo de seguida procuraram apoderar-se das terras uns dos outros, guerreando-se mutuamente. Destes combates resultou a vitória final dos Suevos sobre os Vândalos e os Alanos. Os Suevos ficaram cá, enquanto os outros dois povos se dirigiram para o sul da Península Ibérica, isto é, para a região que passou a chamar-se Vandália, nome este que evoluiu até à presente designação de Andaluzia. Da Andaluzia os Vândalos e Alanos atravessaram o estreito de Gibraltar e instalaram-se no Norte de África, onde fundaram o reino dos Vândalos, que se estendeu desde Marrocos até à Líbia atuais.

Os Suevos, que ficaram senhores da situação neste extremo ocidental da Península Ibérica, trataram de se apoderar das cidades deste território e das riquezas nelas existentes. Conímbriga não escapou à cobiça dos Suevos, tendo sido por eles pilhada e destruída no ano 468. A maior parte dos habitantes da cidade procurou refúgio numa povoação situada a perto de 20 quilómetros de distância e sobranceira ao Rio Mondego, chamada Æminium. Entre estes refugiados estava o bispo de Conímbriga. Como em Æminium passou a residir o bispo de Conímbriga, então a cidade deixou de se chamar Æminium para passar a chamar-se Coimbra, uma simplificação do nome Conímbriga.


Mosaico romano em Conímbriga (Foto: Chris)

Idácio, que foi bispo de Chaves e comandou a resistência desta outra cidade aos invasores suevos, tendo acabado por ser feito prisioneiro e posteriormente libertado, escreveu que os Suevos rapidamente trocaram a espada pela enxada. Quis Idácio dizer com isto que os Suevos acabaram por se estabelecer pacificamente nesta faixa de território, trocando a arte da guerra pela agricultura, que devia ser a sua atividade principal lá na Suábia de onde saíram. Isto mesmo foi atestado muitos séculos mais tarde pelo etnólogo Jorge Dias, que num trabalho publicado em 1948 revelou que o arado tradicional da região de Entre‑Douro‑e‑Minho é de tipo germânico.

Os Suevos fundaram um reino próprio, com capital em Bracara Augusta, a atual cidade de Braga. O reino dos Suevos foi passando pouco a pouco a chamar-se também reino de Portucale, tomando assim o nome da sua cidade portuária mais importante, a atual cidade do Porto. O território ocupado pelo reino dos Suevos compreendia toda a atual Galiza e a parte norte e centro do atual Portugal, estendendo-se até ao Rio Tejo e, por vezes, mais para sul ainda. Mais tarde o reino dos Suevos foi conquistado pelos Visigodos, um outro povo germânico entretanto chegado à Península, e estes, por sua vez, acabaram por ser derrotados pelos Árabes. Mas isto já não tem nada a ver com Conímbriga.


Mosaico romano em Conímbriga (Foto de autor desconhecido)

09 abril 2018

Portugal na Primeira Grande Guerra


9 de abril de 1918. O capitão Beleza dos Santos atravessa uma densíssima barragem de artilharia e consegue salvar a sua bateria, gravura a água forte de Adriano de Sousa Lopes (1879–1944). Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado, Lisboa


9 de abril de 1918. Lacouture sob o bombardeamentogravura a água forte de Adriano de Sousa Lopes (1879–1944). Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado, Lisboa


Uma sepultura portuguesa na terra de ninguém, 1918, gravura a água forte de Adriano de Sousa Lopes (1879–1944). Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado, Lisboa


Uma encruzilhada perigosa, 1918, gravura a água forte de Adriano de Sousa Lopes (1879–1944). Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado, Lisboa

Adriano de Sousa Lopes, de quem já aqui falei há cerca de seis meses, foi um pintor e desenhador português, que foi enviado para a frente de batalha em 1917, na qualidade de oficial encarregado de documentar iconograficamente a participação portuguesa na Primeira Guerra Mundial. Desta sua missão, resultou um conjunto de impressionantes desenhos a água forte, sob o título genérico de Portugal na Grande Guerra, em que o artista nos dá, em dramáticos instantâneos, um testemunho da vida nas trincheiras, dos combates travados pelo Corpo Expedicionário Português e das suas consequências, nos campos da Flandres.

Posteriormente, Sousa Lopes foi encarregado de documentar a mesma guerra em grandes telas que se encontram no Museu Militar de Lisboa, que fica em frente à estação de Santa Apolónia. Independentemente do valor artístico, que é enorme, de muitas das obras que podem ser admiradas em diversas salas do Museu Militar de Lisboa (de Columbano Bordalo Pinheiro, José Malhoa e outros), acho que a secção do museu dedicada à Primeira Guerra Mundial é a única que merece verdadeiramente ser visitada, muito por causa do enorme dramatismo emprestado por Sousa Lopes às suas pinturas. Elas mostram-nos como a Primeira Guerra Mundial foi vivida pelo Corpo Expedicionário Português.


Destruindo o obus, dramática tela de Adriano de Sousa Lopes (1879–1944). Museu Militar de Lisboa

04 abril 2018

Crianças de África


Mafalala, Maputo, Moçambique (Foto: Grég E.)

Completa-se hoje meio século sobre o assassínio de Martin Luther King Jr. (1929–1968). O seu sonho de um mundo isento de ódio e de discriminação, atingível sem recurso à violência, parecia ter ficado definitivamente comprometido. Não ficou. É verdade que esse sonho não está realizado, longe disso, mas fizeram-se alguns avanços, que se deseja que possam continuar até ao fim.

Os rostos das crianças que figuram nesta pequena galeria de imagens, que colhi aqui e ali na internet, as quais vivem no continente do qual os antepassados de Martin Luther King Jr. foram levados à força para a América, são uma chama de esperança por um futuro mais livre, mais humano e mais justo, tal como ele sonhou.


Etnia Himba, Namíbia (Foto de autor desconhecido)


Axim, Gana (Foto: cdoadn)


Senegal (Foto: Jim Sohm)


Mali (Foto: Izla Photography)


Etnia Yoruba, Benim (Foto: Steven Goethals)


Ancuabe, Cabo Delgado, Moçambique (Foto: Augusto Rodríguez portraits)

01 abril 2018

Oratória da Páscoa


Oratória da Páscoa, BWV 249, de Johann Sebastian Bach (1685–1750), pelo Coro e Orquestra Barrocos de Amesterdão, dirigidos por Ton Koopman. Os cantores solistas não estão identificados no Youtube, mas deverão ser Lisa Larsson (soprano), Elisabeth von Magnus (meio-soprano, que nesta oratória canta como soprano e também como contralto), Bogna Bartosz (contralto), Gerd Türk (tenor) e Klaus Mertens (baixo). Os instrumentistas solistas deverão ser os músicos da Orquestra Barroca de Amesterdão Margaret Faultless (violino), Jaap ter Linden (violoncelo), Marcel Ponseele (oboé e oboé de amor), Wilbert Hazelzet (flauta transversal) e Stephen Keavy (trompete)

A Oratória da Páscoa (chamada Oratório da Páscoa no Brasil) é uma oratória composta pelo compositor alemão Johann Sebastian Bach, que foi apresentada ao público pela primeira vez em 1 de abril de 1725, ou seja, há precisamente 293 anos, que também foi Domingo de Páscoa. Após a sua estreia, a oratória sofreu duas revisões por parte do autor, a primeira em 1735 e a segunda alguns anos mais tarde. É a última versão desta oratória que se ouve nesta gravação.

Em vez de ter um narrador, como acontece, por exemplo, na Oratória de Natal, a Oratória da Páscoa de Bach é narrada por quatro personagens, que são o apóstolo Simão Pedro (tenor), o apóstolo João (baixo), Maria Madalena (contralto) e Maria mãe de Tiago (soprano), que encontraram o túmulo de Jesus Cristo vazio.