27 fevereiro 2018

As cunhadas do rei (conto popular português)


Uma pequena azenha no ribeiro de Enxidrô, um afluente do rio Bestança, nas proximidades de Vila de Muros e da Quinta do Sargaçal, Cinfães (Foto: Associação Por Boassas)

O rei andava de noite pelas ruas acompanhado do seu cozinheiro e do seu copeiro disfarçado, escutando pelas portas; passou por um balcão onde estavam três meninas, que estavam conversando, e pôs-se à escuta do que diziam:

— Ali vão três tunantes; se um fosse o rei, já eu sabia quem eram os outros.

— Um era o cozinheiro. Quem me a mim dera casar com ele; sempre havia de comer bons fricassés.

— O outro era o copeiro; pois eu cá o que queria era casar com ele, porque havia de ter bons licores.

Disse a mais nova:

— Eu não sei quem eles são; mas ainda que fossem condes ou duques, antes queria casar com o rei, porque lhe havia de dar três meninos cada um com a sua estrela de ouro na testa.

O rancho foi-se embora, mas ao outro dia, o rei mandou ir à sua presença as três irmãs. Perguntou-lhes se era verdade o que elas tinham dito na véspera à noite. Respondeu a mais velha por si. Disse o rei:

— Pois então casarás com o meu cozinheiro.

A do meio tambem disse que tinha falado por zombaria; o rei mandou que se arrecebesse com o copeiro. Chegou-se por fim à mais moça, que era a mais bonita:

— Então, disseste que só querias casar comigo?

— É verdade, não posso mentir; mande-me vossa majestade castigar.

O que o rei fez foi casar com ela; as irmãs ficaram a arrebentar de inveja, mas viviam no palácio. Ao fim do tempo, a que estava rainha teve dois meninos com uma estrelinha na testa. As irmãs, que estavam com ela, trocaram os meninos por dois cães. Os meninos foram botados ao rio dentro duma condessinha, e foram por água abaixo ter ao moinho de um moleiro; como lhe parasse a água, ele saiu a ver o que era, e achando as duas criancinhas tomou-as para casa e criou-as. Ora o rei andava longe da terra, e quando veio soube do caso e ficou muito triste, mas não fez mal à mulher. Passado tempo a rainha teve uma menina, e as irmãs, vendo que ela também tinha uma estrela na testa, trocaram-na por uma cadelinha e mandaram-na deitar ao rio; assim foi ter ao moinho onde já estavam os irmãos. O rei quando soube que a sua mulher tinha tido uma cadela, mandou-a enterrar até á cinta no pátio do palácio, para que todos que entrassem ou saissem lhe cuspissem em cima.

Os três meninos cresceram, e o moleiro pôs-lhes umas carapucinhas para encobrir as estrelas de ouro que tinham na testa.

Um dia foi uma pobre pedir esmola à porta do moleiro; os meninos deram-lhe a esmolinha, e era Nossa Senhora, que lhe disse, que quando se vissem em alguma aflição dissessem: «Valha-me aquela pobrezinha.» Veio a peste, e o moleiro e toda a sua gente morreu, e os meninos foram todos três por esse mundo. Apareceu-lhe a pobre que os guiou até ao pé do palácio do rei, e deu-lhes a cada um a sua pedrinha, para se tornarem em um grande palácio quando as atirassem ao chão.

As tias estavam à janela do paço, e conheceram que eram os meninos das estrelinhas na testa, e trataram logo de ver se os matavam. Mandaram ter com eles uma criada bruxa, que disse ao mais novinho, para entrar no jardim e apanhar um papagaio. Ele disse-lhe que não; vai o mais velho como animoso, disse:

— Pois vou eu.

E assim que entrou perdeu-se lá dentro e ficou encantado em leão. O outro quando viu que o irmão não tornava chamou pela pobrezinha; ela veio e deu-lhe uma lança, e disse:

— Vai ao jardim, e fere com ela o leão encantado.

Ele assim fez; e apareceu-lhe logo outra vez o irmão, que já tinha apanhado o papagaio. Botaram a fugir logo, e os portões do jardim fecharam-se de repente e só apanharam uma pontinha da aba do casaco de um deles.

A criada bruxa tinha no entretanto ido ter com a menina, e falou-lhe em certas maravilhas da árvore que bota sangue e da água de mil fontes. A menina pediu aos irmãos estas cousas, que eram para enfeitar os jardins do seu palácio. Cada um foi lá por sua vez e lá ficaram ambos encantados. Quando a menina viu que não tornavam, disse muito triste:

— Valha-me aqui a nossa pobrezinha.

Apareceu-lhe a Nossa Senhora, que lhe ensinou como havia de ir ao jardim, e desencantar os irmãos, e enfrascar a água de mil fontes e cortar o ramo da árvore que deitava sangue. Ela fez tudo, mas era preciso, que por mais barulho que ouvisse nunca olhasse para trás, senão ficava também encantada. Quando vinha com os irmãos e com as cousas que eles tinham ido buscar, era muito o barulho de vozes e só ao sair da porta é que deu um jeitinho à cabeça para ver para trás, mas foi o bastante para lhe ficarem presos os cabelos. Os irmãos foram buscar umas tesouras, e voltaram depois todos para o seu palácio defronte do rei.

Quando o rei aparecia à janela o papagaio não fazia senão rir. O rei convidou os meninos para um banquete e pediu que levassem o papagaio. Os meninos foram, mas ao passarem pela mulher que estava enterrada até á cinta não quiseram cuspir nela. O rei teimou, mas não conseguiu nada. Foram para a mesa; uma das irmãs da rainha é que trinchava, e tinha botado resalgar na sopa dos meninos. O papagaio avisou-os:

— Meninos, não comam que tem veneno.

O rei ficou desconfiado, e perguntou aos meninos porque não comiam; disseram eles:

— Falta aqui uma pessoa; é aquela mulher que está enterrada até à cinta no pátio do palácio.

Disse o papagaio:

— Mande-a o rei vir, porque ela é a mãe destes meninos.

O rei mandou vir a mulher; disse-lhe o papagaio:

— Sente-a agora ao seu lado; olhe que ela é sua mulher.

E contou como é que as cunhadas do rei tinham mandado botar ao rio em canastrinhas os três meninos, e tinham posto em seu lugar os cães; e se se quisesse confirmar, que visse se os meninos tinham na testa as estrelinhas. Os meninos tiraram as carapucinhas, e o rei conheceu-os, e abraçou a sua mulher; e mandou que as cunhadas comessem a comida envenenada, e logo ali arrebentaram.

Conto tradicional de Airão, Guimarães, in Contos Tradicionais do Povo Português, por Teófilo Braga (1843–1924)

23 fevereiro 2018

31 anos após a morte de Zeca Afonso, a sua música continua viva


Canto Moço, por José Afonso (1929–1987)

21 fevereiro 2018

Água que não molha


A Onda, de William Bouguerau (1825–1905), óleo sobre tela de 1896. Coleção privada

William Bouguereau foi um pintor francês que gozou de grande fama no seu tempo. Tendo caído no esquecimento durante quase todo o séc. XX, tido como um artista puramente académico, Bouguerau é de novo valorizado na atualidade e as suas obras são de novo apreciadas.

William Bouguerau (de seu nome completo William-Adolphe Bouguerau) foi, sobretudo, um pintor de mulheres. O nu feminino desempenhou um papel de particular relevo na sua obra, em que as mulheres são frequentemente representadas à beira-mar. A tela que aqui se mostra é um dos seus melhores quadros deste tipo.

Um aspeto muito curioso deste quadro é o facto de a mulher representada se mostrar completamente seca, apesar de estar numa proximidade das ondas tal que se esperaria que estivesse completamente molhada. Mesmo as partes do seu corpo que assentam na água se apresentam secas, como se a água fosse sólida e não líquida.

Eu não sei em que condições Bouguerau pintou este quadro, mas tudo indica que ele pintou, primeiro, o mar rebentando numa praia, sem mulher nenhuma, e a seguir pintou a mulher por cima, perante um modelo posando no seu próprio estúdio, num ambiente fechado e talvez aquecido. Mesmo assim, Bouguereau poderia tentar mostrar a mulher molhada, pintando gotas de água a fingir que escorrem pelo seu corpo, mas preferiu representá-la tal como ele a viu: enxuta.

16 fevereiro 2018

Isto é um átomo


No centro da imagem, um pontinho quase invisível é um átomo de estrôncio (Foto: David Nadlinger, Universidade de Oxford, Inglaterra)

Os átomos são os mais pequenos constituintes da matéria em que é possível observarmos as propriedades dos elementos químicos. Se dividirmos um átomo nos seus próprios constituintes, deixaremos de ter um elemento, para passarmos a ter, apenas, protões, neutrões (se os houver) e eletrões.

Os átomos têm dimensões incrivelmente pequenas. Um átomo de estrôncio tem um raio calculado em 219 picómetros, ou seja, 0,000 000 219 milímetros! Apesar destas ínfimas dimensões, já é possível vermos átomos individuais recorrendo aos mais avançados microscópios eletrónicos. Até já é possível movimentar átomos, um a um, de um lugar para outro! Os átomos aparecem nos microscópios eletrónicos como pequeninos círculos de aspeto difuso. As nuvens de eletrões que orbitam em torno do núcleo dos átomos (composto pelos protões e neutrões) não nos permitem ter uma visão nítida deles.

Tendo os átomos tão reduzidas dimensões, somos levados a concluir que nunca os poderemos ver a olho nu. Ou será que podemos?

Podemos, sim, senhores. Basta isolarmos um átomo e fazê-lo brilhar. Foi o que fez o cientista David Nadlinger, da Universidade de Oxford, que manteve um átomo de estrôncio isolado e imóvel, preso dentro de uma câmara estanque na qual foi produzido um vácuo extremamente elevado. O átomo foi mantido firme dentro da câmara por meio de campos eletromagnéticos, produzidos por dois elétrodos metálicos com pontas em forma de agulhas. Sobre o átomo assim isolado e imóvel, Nadlinger fez incidir um laser de radiação ultravioleta, com uma frequência tal que o átomo, excitado pelo laser, emitiu de volta radição visível. Foi então possível observar o átomo à vista desarmada e fotografá-lo. Não é inequivocamente afirmado que o átomo tenha sido observado à vista desarmada, mas talvez seja possível observá-lo num quarto mergulhado em completa escuridão, como um pontinho luminoso muito ténue. A imagem obtida ganhou o primeiro prémio de um concurso de fotografia científica organizado pelo Engineering and Physical Sciences Research Council (EPSRC).


A fotografia vencedora completa, mostrando o dispositivo que permitiu a visão de um átomo de estrôncio, no centro (Foto: David Nadlinger, Universidade de Oxford, Inglaterra)

13 fevereiro 2018

Os caretos de Lazarim



As comunidades rurais possuem um conjunto de saberes e de práticas que pretendem preservar e transmitir às gerações futuras, como património cultural e identitário. A vila de Lazarim, no concelho de Lamego, Norte de Portugal, encontrou no Carnaval um tempo de excepção para afirmar a sua identidade cultural, recuperando os ritos, os símbolos e os textos associados às festas de Inverno. A partir de 1985 as práticas carnavalescas foram institucionalizadas, num modelo performativo que procura mostrar a tradição local ao mundo global. (…)

O Carnaval constitui um sistema simbólico associado à transição do Inverno para a Primavera, do velho para o novo, da morte para a vida, do frio para o calor, da parte masculina para a parte feminina do universo, reunindo diversos significados que assinalam este ciclo na vida das comunidades rurais. Um ciclo de renovação cósmica e social, tempo de utopia e transgressão, onde tudo o que é socialmente marginalizado busca uma libertação catártica, vencendo simbolicamente a hierarquia, a ordem, a opressão, e o sagrado. (…)

Em Lazarim, três gerações de artesãos, com diferentes expressões artísticas, transfiguram um tronco de amieiro, árvore que nasce nas margens do rio Varosa, em figuras representativas da tradição local. Cada um destes homens regista simbolicamente nas suas máscaras, o seu universo cultural e o seu imaginário. (…)

Os Caretos de Lazarim exibem através das suas máscaras representações de figuras históricas como bispos, reis e romanos, de figuras místicas como bruxas e diabos, de figuras grotescas, e ainda figuras de animais, como o burro, a corsa, o mocho e o porco. (…)

Os Caretos completam a máscara com outros elementos de vestuário, como fatos confeccionados de palha, ou de barba de milho entrançado, capas vermelhas ou negras com debruados. Na mão, transportam quase sempre um objecto de uso agrícola, como uma enxada ou uma forquilha, havendo alguns que usam um cajado de nogueira, que nos remetem para o sistema simbólico do mundo rural. (…)


(…) O início do ritual é sinalizado pelo ribombar dos foguetes às três horas da tarde de terça-feira gorda. No Largo do Padrão começam a afluir os primeiros Caretos, lançando farinha e jactos de água sobre os forasteiros e os locais. Os forasteiros respondem com disparo de câmaras fotográficas, tentando registar tudo aquilo que foi anunciado como tradicional. No Largo da Casa do Povo, homens e mulheres preparam “ o banquete”, a confecção da feijoada, em grandes panelas de ferro, que no final do ritual será partilhada pelos visitantes e locais. Os homens carregam lenha, ateando o fogo, e as mulheres aprontam os ingredientes da feijoada, composta de feijão branco, enchidos, entrecosto e orelha de porco. No centro da Vila, outro grupo de mulheres prepara o caldo de farinha, composto de farinha de milho, couves e enchidos de porco, que têm a mesma finalidade, a de serem consumidos depois do ritual do testamento. Entretanto, soam as primeiras batidas dos bombos que ecoam no Largo do Padrão. O grupo de tocadores é constituído por quatro elementos, um par de bombos e um par de caixas que vão percorrendo as ruas de Lazarim, seguidos pelos Caretos, nas suas inocentes tropelias, e pelos representantes dos grupos das Comadres e dos Compadres. O cortejo vai até ao lugar de Valverde, onde o Sr. Hélio Fernandes, artesão dos bonecos carnavalescos, lhes entrega uma espécie de andor, com a mascote do grupo de género, um boneco, para o grupo das Comadres e uma boneca, para o grupo dos Compadres, feitos de papel colorido com uma instalação pirotécnica. (…)

O cortejo atravessa a vila, desde Valverde até ao Padrão, e os participantes concentram-se no Largo da antiga Casa do Povo. Os Caretos dançam ao som dos bombos e caixas, em volta da fogueira onde se cozinha a feijoada, enquanto os Compadres e as Comadres se concentram no cimo das escadas da Casa do Povo. (…)

O grupo das Comadres e dos Compadres são representados por duas raparigas e por dois rapazes, solteiros. Um representante de cada grupo será escolhido para leitor do testamento, e o outro, transporta a mascote; o boneco simbolizando o Compadre e a boneca simbolizando a Comadre. O significado atribuído à representação dos géneros, através da figura dos bonecos, é particularmente relevante, na medida em que as cores das suas roupas e adornos são de uma exuberância que contrasta com o vestuário comum dos membros da comunidade. (…)

A ordem que assinala o início do ritual é dada pelos bombos, organizando-se um novo cortejo até ao Largo do Padrão, onde serão lidos os testamentos da Comadre e do Compadre. Os Caretos seguem à frente, seguidos dos representantes dos grupos, e por fim os tocadores e os acompanhantes, população e forasteiros. (…)

No Largo do Padrão foi montado um palco improvisado, onde os Compadres e as Comadres tomam os seus lugares dando início à leitura dos testamentos. O texto do testamento é composto por três partes; a introdução, composta por quadras alusivas ao ciclo do Carnaval e pela identificação da(o) testamenteira(o); as “deixadas” ou quadras dedicadas a todos os rapazes e raparigas solteiras e o final, alusivo ao fim da Comadre e do Compadre, anunciando a morte e rebentamento pelo fogo.
Com a fome que trazeis
Passais a vida a ladrar
Comeis a burra inteirinha
Nem a rata vai escapar.

Para manter a tradição
E o Carnaval não findar
Vamos repartir a burra
Para a boca vos calar.
O final de cada verso é sempre sinalizado com o rufar dos bombos. O texto é sarcástico, jocoso e vernáculo, recorrendo ao uso de alguns palavrões e abordando sobretudo os defeitos de carácter e de comportamento, tendo como acentuação a vertente sexual. (…)

O texto dos Compadres acentua igualmente os defeitos de carácter e os comportamentos das raparigas, mas tem mais incidência nos aspectos da vida sexual, utilizando uma linguagem mais jocosa, recorrendo ao uso de palavrões e dando-lhe uma forma mais grotesca do que o das Comadres, mas essa construção verbal é construída conscientemente.
Como já estavam há espera
Está cá o fanfarrão
Para dar carninha a todas
E manter a tradição.

A todas vamos dar carne
Pois é isso que elas querem
Não importa de quem seja
Consolar-se elas preferem.
Os testamentos carnavalescos no uso de linguagem jocosa, nas injúrias e nos palavrões, que constituem as “deixadas”, remetem sempre para um paralelismo entre as características do beneficiário e o objecto de partilha. Para os nossos informantes o significado deste ritual é “mais um gladiar entre homens e mulheres”, elegendo como bem de partilha, o burro e a burra, num paralelismo masculino/feminino que acentua as relações sociais e simbólicas entre pares de opostos. A figura do animal parece adquirir um duplo significado: o de símbolo bíblico da humilhação e da docilidade e, a do corpo grotesco cómico decepado, quando valorizadas as partes sexuais, objecto de partilha.
É o Paulo já se vê,
Vai repartir a burrinha,
Fica com a melhor parte,
Essa será a ratinha.


A audiência, composta por pessoas de vários grupos etários, reage pelo riso ao desfilar dos versos, contrastando com a postura séria dos leitores. Os grupos de rapazes e raparigas vão partilhando entre si cumplicidades através da troca de olhares. Também é possível observar que o testamento dos Compadres provoca quase sempre mais gargalhadas na assistência que o das Comadres. (…) Após a leitura dos textos é organizado um cortejo, durante o qual a solenidade e contenção são assumidas pelos participantes que se dirigem para o sítio da Cruzinha, em Valverde, onde os bonecos serão consumidos pelo fogo. Os Caretos tomam a dianteira, seguidos dos Compadres e das Comadres. Os tocadores impõem uma batida lenta e compassada, como num cortejo fúnebre, seguidos pela população local e pelos forasteiros.

No lugar da Cruzinha, em Valverde, os bonecos armadilhados por efeitos pirotécnicos, vão rodopiando, produzindo ruído e chamas acompanhadas de sucessivas explosões e batidas dos tocadores, até ao estoiro final, provocando na assistência, sobretudo nas crianças, uma enorme alegria e algazarra que perduram na memória. (…)

Em Lazarim a imolação dos bonecos assinala o término do ritual da festa carnavalesca, seguindo-se-lhe o “banquete”, espaço de confraternização entre os membros da comunidade e os forasteiros, através da comensalidade. O rito de passagem está concluído, mas o processo de reinvenção da tradição inseriu novos elementos à festa, o concurso de máscaras. O concurso é organizado pela Casa do Povo para premiar e incentivar os artesãos de máscaras de madeira, e manter a continuidade e a tradição. Este é um dos momentos da festa em que a audiência é essencialmente composta pelos membros da comunidade, artesãos e seus familiares. O júri do concurso é constituído por pessoas convidadas, exteriores à comunidade. Os prémios atribuídos contemplam a melhor máscara no seu conjunto (fato e máscara), a melhor máscara de madeira, a primeira máscara, e prémios de participação, como incentivo e reconhecimento pelo trabalho desenvolvido. Durante o concurso a maior parte dos visitantes dispersa-se pelos lugares onde são oferecidos os “banquetes”.

No Largo da Vila saboreia-se o caldo de farinha, e no Largo da Casa do Povo a feijoada. A história a que remete a origem do banquete comunitário celebra a abundância do grupo social, de tal forma que se permitem a convidar os vizinhos e os forasteiros para o seu banquete. (…) o Carnaval de Lazarim remete-nos para um contexto rural de formação cristã, e o seu ritual para uma pândega libertadora, onde rapazes e raparigas cumprem o seu papel de herdeiros de uma paródia burlesca. (…)

Dulce Simões, in Carnaval em Lazarim: Máscaras, Testamentos e Práticas Carnavalescas

10 fevereiro 2018

Rock



Champagne & Reefer, por Buddy Guy e The Rolling Stones



Hotel California, pelos Eagles



10000 Anos Depois Entre Vénus e Marte, a obra-prima de José Cid

07 fevereiro 2018

Algumas considerações a respeito do frio


(Foto de autor desconhecido)


As palavras que se seguem não são dirigidas a pessoas com a saúde debilitada, em razão de doença, idade avançada ou outra condição. As pessoas que se encontram nesta situação devem tomar todas as precauções possíveis para se resguardarem do frio e das suas consequências.


O explorador norueguês Roald Amundsen (1872–1928) dirigiu a primeira expedição que conseguiu atingir o Polo Sul, em dezembro de 1911. A mesma sorte não teve o explorador britânico Robert Scott (1868–1912), que morreu vítima do frio extremo. Perguntaram uma vez a Amundsen a razão do seu êxito. Amundsen respondeu que ele se deveu ao facto de que desde pequeno se tinha habituado ao frio, dormindo sempre com a janela aberta, mesmo no auge do mais rigoroso inverno norueguês.

Quem mora numa cidade nem sempre terá a possibilidade de dormir com a janela aberta. Aclaridade da iluminação pública, o ruído do trânsito ou a oposição manifestada pelo nosso companheiro ou companheira de cama (se houver) impedem tal propósito. Mas existem outros meios para nos adaptarmos um pouco mais ao frio do inverno, que este ano está a ser mais rigoroso do que os anteriores.

Quando eu era uma criança pequena, a minha mãe (como todas as mães) obrigava-me a vestir roupa em cima de roupa no inverno, quase até sufocar… O que mais me custava vestir eram as grossas camisolas interiores e as grossas calças de fazenda, que me picavam a pele como se fossem forradas a escova de arame. Como a minha família não nadava em dinheiro, a roupa que a minha mãe me comprava era tão barata quanto possível. As camisolas interiores e as calças de fazenda eram, por isso, extremamente ásperas. Eram verdadeiros instrumentos de tortura.

Uma vez, quando eu tinha cerca de sete anos, revoltei-me. Numa manhã fria de inverno, enquanto me preparava para ir para a escola, a minha mãe, como sempre fizera, vestiu-me uma áspera camisola interior. Despi-a imediatamente a seguir e vesti a camisa por cima da pele nua. Apesar do arrepio que então me percorreu as costas, porque a camisa me pareceu gelada, senti uma extraordinária sensação de alívio, porque a camisa era fina e suave, em contraste com a aspereza da camisola interior. Para meu enorme espanto, a minha mãe não só não me ralhou, como dobrou e voltou a arrumar a camisola na gaveta, enquanto eu vestia o resto da roupa. Fui para a escola sem camisola interior, aliviadíssimo por não trazer a "escova de arame" vestida. E nunca mais usei camisolas interiores até hoje, sejam elas ásperas ou suaves, a não ser quando estou engripado.

Como a minha mãe tinha aceitado a minha recusa em usar camisola interior, tive logo a seguir um segundo ato de rebeldia. Em vez de vestir as grossas e ásperas calças de fazenda que a minha mãe queria que eu vestisse, vesti uns finos calções de verão e fui para a escola de calções. Mais uma vez a minha mãe não reagiu e não me ralhou. Passei então a andar sempre de calções, 365 dias por ano, mesmo nas mais frias manhãs de geada, até ter cerca de 15 anos de idade. Só aos 15 anos, com efeito, é que voltei a usar calças compridas, que eram macias porque era eu que as escolhia…

Em criança, portanto, habituei-me a andar com pouca roupa e de pernas ao léu. E não adoeci mais por causa disso. A única doença que eu apanhava era gripe. De resto, nunca tive nenhuma das outras doenças que todas as crianças do meu tempo apanhavam. Apesar de eu conviver e brincar com elas todos os dias, nunca apanhei sarampo, nem varicela, nem papeira, nem escarlatina, nem nenhuma outra doença infecciosa que não fosse gripe. Será que o facto de eu andar com pouca roupa contribuiu para reforçar as minhas defesas naturais?

Ainda hoje sou calorento, embora não seja tanto como na minha infância e adolescência, nem pouco mais ou menos. Sabe tão bem sentir o fresquinho, mesmo no inverno!

Eu não sou um entendido no assunto, nem sequer me preocupei alguma vez com isso, mas agora que o frio aperta, recordo o que se passou comigo ao longo da minha vida, a respeito do frio e do calor, e permito-me tirar algumas conclusões, que são puramente empíricas.

A primeira conclusão a que chego é que as pessoas agasalham-se excessivamente no inverno. Tendem a manter uma temperatura constante do corpo em todas as situações. A mais pequena aragem provoca-lhes então arrepios, acessos de tosse e espirros. Ora no verão as pessoas expõem o seu corpo, por vezes, a temperaturas bastante baixas. Basta passarem algumas horas numa praia da costa ocidental de Portugal Continental num dia de nortada. Neste caso, as pessoas sentem frio, arrepiam-se, até tremem de frio, mas não se constipam! Então porque é que no inverno a mais breve exposição do seu corpo a uma temperatura mais baixa lhes provoca imediatamente um resfriado?

Os seres humanos povoaram todo o planeta e não apenas as suas zonas mais temperadas. E sobreviveram. Nós não somos umas flores de estufa, que precisam de estar permanentemente protegidas. Temos uma capacidade de nos adaptarmos à temperatura ambiente que é bem maior do que imaginamos. Esta adaptação é incómoda? Mais incómodos são os resfriados e constipações. De qualquer modo, não é preciso cometer loucuras. Um pouco de adaptação é suficiente. Nós não vamos para um rio da Sibéria nadar num buraco aberto no gelo, pois não?

Recomendo, então, que se passe a usar menos roupa, mas com conta, peso e medida. Raramente está tanto frio como imaginamos que está, mas mesmo que esteja tanto frio assim, pode ser que o nosso corpo o aguente com um pouco menos de roupa. Normalmente aguenta. Se não aguentar, então não devemos hesitar em nos agasalharmos e aquecermos, inclusive em excesso, até que o nosso corpo retome a sua temperatura normal. A nossa saúde é preciosa.

Procuremos andar ao ar livre sempre que possível. O ar frio revigora o organismo e até faz emagrecer, sem necessidade de dietas. O frio ajuda a eliminar calorias, que são dissipadas do nosso corpo por irradiação. Se também pudermos fazer exercícios físicos, tanto melhor.

Pode não ser possível dormirmos com a janela aberta, como fazia Amundsen, mas é possível dispensar o uso de botijas de água quente na cama, é possível dispensar o emprego de aquecedores no quarto de dormir, é possível dispensar o emprego de cobertores elétricos (que além do mais podem provocar incêndios!), é possível mesmo dispensar o uso de roupa de dormir, como pijamas e outras peças, entrando na cama tal como viemos ao mundo. Desde que haja cobertores suficientes na cama, porque não? É o que eu faço. Só quando estou engripado é que durmo de pijama, mas sempre sem aquecimento da cama e do quarto. É claro que esta recomendação só se deve pôr em prática se a pessoa que dormir connosco (se houver alguma) estiver de acordo.

Pela manhã, devemos lavar a cara, o pescoço, as orelhas, etc., com água fria. Esta é uma prática que até a minha mãe recomendava. A nossa cara costuma andar a descoberto e só ganharemos em habituá-la a suportar melhor o frio. Note-se que eu não recomendo um banho completo de água fria, que no inverno é particularmente enregelante! Só aconselho a lavar a cara e áreas adjacentes. Uma coisa é irmos à praia no dia de Ano Novo dar um mergulho no mar, cuja água está a uma temperatura da ordem dos doze a catorze graus Celsius, na costa ocidental de Portugal Continental durante o inverno; outra coisa é tomar um banho frio em casa, em que a água sai da torneira ou do chuveiro a uma temperatura que no inverno pode ser consideravelmente inferior a dez graus. Certamente não vamos querer apanhar uma pneumonia.

Quem passa o dia a trabalhar num ambiente aquecido, como num escritório com aquecimento centralizado ou numa fábrica ou oficina em que há fontes permanentes de calor, tais como fornos e caldeiras, ou em que há aquecimento centralizado também, então sabe como é particularmente penoso sair para a rua no fim do dia de trabalho. Mal se põe os pés fora da porta, apanha-se subitamente com o ar frio na cara como se fosse uma bofetada. Uma pessoa nesta situação deve fazer um esforço para se habituar rapidamente ao frio, procurando, tanto quanto lhe for possível, correr ou fazer uma caminhada vigorosa, literalmente para aquecer. Só depois poderá entrar no carro, sem necessidade de ligar o aquecimento, ou apanhar o transporte público para regressar a casa.

O uso de luvas e meias grossas é muito recomendável. As mãos e os pés quentes são meio caminho andado para nos sentirmos quentes por inteiro, mesmo que vistamos pouca roupa. Se o sangue consegue fluir até às extremidades do corpo, mantendo-as quentes, então flui pelo resto do corpo todo, mantendo-o quente também. Nesta situação, podemos andar com pouca roupa no resto do corpo, adaptando-o ao frio, sem que sintamos esse mesmo frio. Se não tivermos luvas connosco, poderemos andar com as mãos metidas dentro dos bolsos, está claro, mas com o casaco desapertado, para habituarmos o nosso corpo ao frio. Não há nada mais desagradável, de resto, do que sentir as mãos e os pés gelados.

Se, por qualquer motivo, começarmos a ter arrepios e a tremer de frio, devemos tentar controlar estes arrepios e tremores. Se o conseguirmos, rapidamente deixaremos de sentir frio. Até parece milagre. Mas se os tremores e arrepios se mantiverem, apesar dos nossos esforços para os controlar, então deveremos agasalhar-nos logo, porque a tolerância do nosso organismo ao frio poderá estar a ser ultrapassada e corremos o risco de apanhar um resfriado.

Como em tudo na vida, tem de haver prudência e moderação. Nada de exageros. Sentir o fresquinho do inverno sabe muito bem (eu que o diga), mas não justifica que se cometam disparates e loucuras. Bom inverno (na medida do possível).


(Foto de autor desconhecido)

02 fevereiro 2018

Álvaro Pires de Évora


A Anunciação, de Álvaro Pires de Évora, c. 1430–1434, têmpera e ouro sobre madeira. Quadro adquirido pelo Estado português num leilão, tendo custado 349 000 euros

Acaba de ser tornada pública a notícia da aquisição, pelo Estado português, de um quadro intitulado "A Anunciação", da autoria do pintor quatrocentista português Álvaro Pires de Évora. Este quadro, que terá feito parte de um díptico cujo outro quadro desapareceu, deverá ficar exposto ao público no Museu Nacional de Arte Antiga, em Lisboa, na ala onde se encontram os "Painés de São Vicente", de Nuno Gonçalves.

Pouco se sabe da vida de Álvaro Pires de Évora. Sabe-se que terá nascido em Évora, em data desconhecida, e terá falecido em data e local igualmente desconhecidos, talvez em Itália. Foi em Itália, com efeito, que Álvaro Pires de Évora executou a maior parte dos seus trabalhos, sabendo-se que esteve ativo entre 1411 e 1434. O seu estilo é predominantemente gótico, com uma abundante utilização de ouro.


Díptico Anunciação, de Álvaro Pires de Évora, c. 1410–1420, óleo sobre madeira. Coleção privada, Perugia, Itália


Nossa Senhora com o Menino e Dois Anjos, de Álvaro Pires de Évora, c. 1415, têmpera sobre madeira. Museu Nacional de San Matteo, Pisa, Itália


Nossa Senhora com o Menino, de Álvaro Pires de Évora, 1415–1423, têmpera sobre madeira. Igreja de Santa Croce in Fossabanda, Pisa, Itália


Nossa Senhora com o Menino, de Álvaro Pires de Évora, 1415–23, têmpera sobre madeira com fundo a ouro. Comuna de Livorno, Itália


São Miguel e Jesus Cristo, de Álvaro Pires de Évora, c. 1423, óleo sobre madeira. Museu Narodowe, Varsóvia, Polónia


Nossa Senhora com o Menino, de Álvaro Pires de Évora, c.1424, têmpera sobre madeira. Pinacoteca Nacional, Cagliari, Itália